segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Há 40 Anos, as Eleições de 1969

Completam-se hoje quarenta anos sobre as Eleições de 1969 para a Assembleia Nacional, as primeiras realizadas após a saída de Salazar do poder, e já com Marcelo Caetano como Presidente do Conselho. Essas eleições marcaram históricamente uma fase crítica do chamado Estado Novo, e para as gerações que nelas participaram constituiram um momento crucial da sua participação na resistência e no movimento que viria a conduzir ao derrube da Ditadura. A retirada de Salazar e a sua substituição por Marcelo Caetano não alterou o carácter da ditadura opressiva, obscurantista, retrógada e arbitrária que subjugava o povo português. A realidade trágica do país mais pobre da Europa, simultaneamente colonizado e colonizador, era avassaladora, e a demagogia da "primavera marcelista" rapidamente ruiria ao prosseguir a política de opressão, com salários de miséria e o agravamento do custo de vida, da falta de liberdade, dos Tribunais Plenários, da Censura, da PIDE/DGS, de hipoteca do País ao grande capital nacional e estrangeiro, do abandono e despovoamento das terras, a emigração e a guerra colonial, que matava e estropiava a juventude. O regime, com Marcelo Caetano emparedado e sem soluções, balanceando na contradição impossível de garantir a "evolução na continuidade" e a necessidade de reformar o sistema, foi posto à prova com as Eleições de 1969, que acabaram por acelerar o seu fim, apesar das muitas ilusões que então se criaram em alguns sectores. A acção de milhares de activistas impulsionou e reforçou a Oposição, que corajosamente colocou cruciais exigências, forçando em todas as frentes o espartilho da ditadura. O regime entrou em pânico e, sem respostas, aumentou a repressão, que por sua vez fez subir o tom dos protestos, com a Oposição a não dar tréguas, dispondo já de considerável organização e enquadrando sectores significativos de operários, camponeses, juventude, associações e cooperativas, mulheres, católicos progressistas, intelectuais, estudantes e sectores empresariais.

O distrito de Braga foi palco de muitas lutas e acontecimentos durante esse ano. Sobre eles, já se escreveu bastante história, muito especialmente sobre as lutas conduzidas pela CDE. Em livros, jornais, boletins camarários, catálogos de exposições, internet, programas de rádio, existe um acervo de informações que jamais poderá ser apagado. E na memória do povo, que se transmitiu para filhos e netos, está indelévelmente gravada a sua memória: lutas políticas de gerações de homens e mulheres que se opuseram ao fascismo. Em Famalicão, com particular acuidade em Riba de Ave, o combate pela Liberdade e a Democracia assumiu singular amplitude, com o envolvimento de grande número de operários e outros cidadãos.
As Eleições de 26 de Outubro de 1969 revestiram-se de grande importância no desenvolvimento da luta política em Portugal. Por todo o país, as correntes de opinião democrática organizaram a luta eleitoral, trazendo para o plano das amplas movimentações de massas o conjunto das reivindicações fundamentais do povo português. A substituição de Salazar por Marcelo Caetano, decidida no dia 26 de Setembro de 1968 por Américo Tomaz, abriu o processo que levaria às eleições. Marcelo Caetano, na sua primeira intervenção como Presidente do Conselho, insinua habilmente querer mudar alguma coisa... para tudo ficar na mesma. Os democratas de Braga, caldeados em anos de luta contra o fascismo salazarista, não se deixaram adormecer pelo canto de sereia do discurso marcelista. Um grupo reuniu-se no próprio dia desse discurso(numa casa de praia em Esposende) e continuaram a fazê-lo nos dias subsequentes, para analisar a situação política e tomar decisões quanto às acções a desenvolver, enquanto se alargavam os contactos. Foi decidido, então, transformar as comemorações do 5 de Outubro numa arrancada para as eleições, que o novo poder se via obrigado a realizar, dando-lhe uma fachada liberalizante. Na sequência dessa deliberação, é convocada uma Assembleia de cidadãos do distrito, que se realizou no dia 5 de Janeiro, contando com grande participação de pessoas. Nela, é criada uma "Comissão Democrática Eleitoral", que logo no dia 11 seguinte fez distribuir um Manifesto dirigido "Aos Cidadãos do Distrito de Braga", no qual apelava ao recenseamento e à formação de comissões de apoio em todos as cidades e freguesias onde tal fosse possível. O apelo galvanizou um caudal de gente e tornou-se numa corrente imparável. Formaram-se grupos e comissões de cidadãos para a batalha eleitoral, que no fundo se presumia tratar-se de uma farsa, mas que era necessário aproveitar para desmascarar o regime, como veio a suceder.
O relato dos acontecimentos políticos em que o autor e outros cidadãos de Riba de Ave participaram, nesse ano, integrados na CDE, suportando sacrifícios e correndo enormes riscos, não é tarefa para este apontamento. Todavia, há que deixar claro quer a actuação da PIDE/DGS quer a de alguns "patrões", uns e outros concentrando uma aturada vigilância sobre as actividades políticas dos oposicionistas, recrutando para esse serviço sórdido vários "bufos", em alguns casos sob pseudónimos que os relatórios da PIDE mencionam. Para se ter ideia do seu "compromisso" com o regime, basta dizer que alguns deles não só colocavam camionetes gratuitas para levarem pessoas aos comícios da União Nacional, como davam 50 escudos a cada pessoa; e dizer, ainda, que não fosse as várias dezenas de legionários(e freiras) que vieram de fora votar a Riba de Ave, a Oposição teria aqui ganhado as eleições, já que apenas 74 votos separaram a CDE da UN, com a CEUD a ter somente 1 voto.
As lutas dos operários de Riba de Ave contra o fascismo são um património que o poder local ainda não assumiu, enquanto se preocupa em reescrever a história e recolocar os símbolos do passado. Por isso, o registo das eleições de 1969, não é apenas um acto de memória. É uma homenagem a quantos lutaram e se sacrificaram pela liberdade e para derrubar o fascismo - a oportunidade para inscrever na história local a intervenção do "povo miúdo", cuja história "...corre como um rio subterrâneo por debaixo da história oficial".
Muitos acontecimentos marcaram o ano de 1969. O Manifesto já acima referido, assinado pela Comissão Democrática Eleitoral de Braga e distribuido em todo o distrito, deu lugar, como já dissemos, a que se integrassem na Oposição grupos de operários e estudante que engrossaram o movimento e trouxeram às lutas e tarefas eleitorais uma muito maior vivacidade. Essa força jovem permitiu realizar iniciativas e trabalhos de toda a ordem, que o regime fascista se viu incapaz de travar, mesmo recorrendo aos métodos mais autoritários e opressivos, que das perseguições e intimidações diárias chegaram à viciação de cadernos eleitorais, o corte de eleitores e a falta de papel para as listas de voto da CDE igual ao das listas da UN. A distribuição de documentos, como a "Nova Cartilha do Povo", Informações, Comunicados e muitos outros materiais; o recenseamento porta-a-porta e nos postos de recenseamento só abertos sob requerimento; a cópia dos cadernos eleitorais nas várias Câmaras do distrito, permitida apenas manualmente e em horários complicados; a mobilização de pessoas para as sessões políticas realizadas pela CDE e as comemorações do "31 de Janeiro" e do "5 de Outubro"; a homenagem ao Padre Francisco de Almeida, realizada no mês de Agosto, em Terras do Bouro; a afixação de cartazes e outros materiais eleitorais; as campanhas de angariação de fundos; o preenchimento de inquéritos sócio-económicos junto das populações; a distribuição casa a casa das listas de voto; os vários plenários realizados pela CDE(alguns a durarem até altas horas da madrugada) para traçar linhas de acção, e a coordenação entre as várias comissões distritais, que obrigavam a reuniões frequentes; as movimentações sindicais, principalmente nos têxteis, construção civil e escritórios - sem esquecer que tudo se passava debaixo da "vigilância" da PIDE e bufos, que chegaram a interromper algumas sessões, como em Guardizela - foram acções da campanha eleitoral, travada pela Oposição com uma desigualdade abissal de meios materiais e debaixo de fogo, que só a vontade e determinação das pessoas conseguiram minimizar. Em Riba de Ave, durante todo esse tempo, realizaram-se inúmeras acções políticas dessa natureza. Tantas, que mesmo apenas uma súmula é registo impossível neste trabalho. Pelo impacto que tiveram, refira-se o grande comício realizado num pavilhão fabril, em S.Roque, com os candidatos da CDE, que teve "honras" de televisão, mas cujas imagens nunca foram exibidas; e o posto de recenseamento aberto junto ao pavilhão desportivo, que funcionou como sede da campanha nesta área do concelho, utilizado para reuniões, distribuição de propaganda e sessões políticas, e cujo funcionamento foi tido como "afrontoso" para os mandantes locais.
Recorde-se que para além das dificuldades impostas pelo regime, a Oposição concorreu dividida no distrito de Braga. Uma outra lista, de inspiração socialista, Comissão Eleitoral de Unidade Democrática(CEUD), não foi sensível aos apelos da CDE para desistir de concorrer às eleições, "a bem da causa democrática". As diferenças político-ideológicas entre as duas correntes oposicionistas ficaram bem evidenciadas nos documentos políticos produzidos e, particularmente, na forma como foi abordado o grave problema das guerras coloniais. É dessa altura(28 de Julho), a carta do Dr.Mário Soares dirigida ao Dr.Armando Bacelar, a cortar relações políticas e pessoais, devido a este apoiar a CDE e Mário Soares liderar já o grupo socialista. Registe-se que muitos cidadãos próximos da área socialista, entre os quais Maria Barroso, foram candidatos nas listas da CDE. Por outro lado, o regime procurou uma aproximação com os sectores mais moderados da oposição e conseguiu integrar nas suas listas elementos não conotados com a UN, partido do governo.
No encerramento da campanha, a CDE realizou no Teatro Circo de Braga uma sessão que registou a maior enchente de sempre naquele Teatro, com o público a extravasar para a Avenida. É dessa sessão a foto que publicamos, tirada quando usava da palavra o Dr.santos Simões. Para a estatística, fica a informação do resultado eleitoral no distrito de Braga, segundo os números fornecidos pela União Nacional: Eleitores inscritos, 120.808; Votantes, 82.001; UN, 73.131; CDE, 7.073; CEUD, 1.775. Estes dados merecem pouca credibilidade, uma vez que na esmagadora maioria das assembleias de voto não foi possível exercer fiscalização, por dificuldades de toda a ordem levantadas pelos elementos das mesas de voto, que eram todos nomeados pela UN, para além do medo dos eleitores arriscarem fazê-lo, tal era o clima de intimidação instalado pelos fascistas e seus acólitos. Mesmo tendo em conta os condicionalismos de medo e intimidação, e o carácter discriminatório em que as eleições decorreram, os resultados constituiram uma funda desilusão para quantos supunham possível uma vitória eleitoral no cenário político existente. Concorrendo às eleições, a oposição quis demonstrar a farsa da liberalização sugerida por Marcelo Caetano e que o seu Governo continuava a contar sobretudo com as forças repressivas para manter o poder. Esse era o entendimento da CDE, que logo no dia imediato às eleições, enviou ao Presidente do Conselho(Marcelo Caetano) um telegrama em que, após analisar os condicionalismos políticos relacionados com as eleições e o período eleitoral, terminava assim: "...demos uma lição de civismo frente a tantas e tão variadas coacções, intimidações, prepotências, verdadeiro atentado soberania, dignidade Povo Português. Responsabilizamos Vossa Excelência colossal operação intimidação povo português, sublinhamos contraste afirmações anteriores liberalização e genuinidade acto eleitoral em que muitos julgaram empenhada honra posição política chefe governo. Sobre este acto político, o povo do Distrito de Braga já fez o seu juizo".
As eleições de 1969 não são apenas um episódio datado. Inserem-se no historial da luta do povo português contra a ditadura fascista, como acontecimento exaltante dessa dura batalha, que culminou com a revolução do 25 de Abril de 1974. Enquanto sinal de esperança, acelerou as transformações que se lhe seguiram e a vontade dos que não se conformaram com o país tal qual ele continuava a ser moldado.
Publicamos a seguir alguns documentos(escolhidos ao acaso dentre mais de uma centena que possuimos), extraídos dos arquivos da PIDE(Torre do Tombo), que demonstram as perseguições do aparelho repressivo sobre os cidadãos que ousavam lutar, e sendo prova irrefutável da falsidade da liberalização do regime sob a tutela de Marcelo Caetano. Num "Outubro" de todas as memórias, esta das eleições de 1969 não poderiam deixar de ser recordadas.





























































































3 comentários:

  1. Caro Cunha,

    foi com alegria, contentamento e prazer que relembrei a minha participação na sessão de propaganda do MDP-CDE em S. Roque em 14 de Out. de 1969.

    Fiz o meu tirocínio político no escritório do Salgado Lobo, privei com o Santos Simões, Eduardo Ribeiro, Sá da Costa, contigo, o Zé da Quelha e o João Dias e tantos outros.

    Com o Dr. Mota Prego fui em 1973 a Aveiro, ao 3.° Congresso da Oposição Democrática e depois participei de forma condicionada (era militar) na Campanha eleitoral das últimas "eleições" legislativas realizadas durante a vigência da Constituição de 1933.

    Registo aqui como prenda pelo teu aniversàrio meu caro Cunha o facto de estar documentado pela PIDE no seu relatòrio n°. 349/3/69, que tu eras um militante activo no concelho de VNF e que na tarefa de recensear (os nossos amigos) te davas a canseira de doutrina-los democraticamente para votarem contra as instituições vigentes. (estavamos em 1969)

    Meu caro, Parabéns e um abraço,

    Sérgio

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  2. Olá, caro Sérgio. Agradeço o teu comentário. Mesmo em Bruxelas estás atento ao que vai por aqui. Grande lição para alguns que continuam por aqui mais mortos que vivos, só olhando para o umbigo... Lembraste, e bem, alguns amigos e companheiros das lutas que começaram há muitos anos, éramos nós ainda pouco mais que adolescentes. Sobretudo o Salgado Lobo, um dos homens politicamente mais corajosos que conheci, quase me apetecendo dizer que ele foi fundamental na minha formação politico-ideológica. Por lapso de memória, que o teu comentário veio despertar, ainda não tinha dito neste blogue que o Salgado Lobo foi um dos colaboradores do número único da revista LEMMA que dá o título ao blogue. Só por isso, o teu comentário foi importante. Continuaremos certamente a conversar, para um dia qualquer irmos beber um copo ao Tosco ou ao 7 olhinhos. Combinado? Um grande abraço.

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  3. Cunha,
    Tenha acompanhado com interesse os textos que vens escrevendo.
    Admiro a tua persistência assim como a qualidade e pertinência dos temas.
    Foi bom escutar as memórias de muitos amigos que estiveram no campo da batalho no tempo em que era difícil e arriscado.
    Sobre as eleições de 69, que juntou a minha geração à vossa, o debate que o quadragésimo aniversário daquelas eleições proporcionou revelou que muito está por conhecer.
    Uma coisa é certa, o movimento popular de 1969 abriu as portas à Revolução de Abril.
    Ao meu lado na mesa redonda, no Museu Bernardino Machado, tive o gosto de ter o meu amigo de peito Artur Simões, um dos que ocupou a emissora Nacional na noite de 24 de Abril, já para não dizer que dormi essa noite sabendo que os militares iriam virar as armas contra a ditadura…Adormeci ouvindo as canções do Paulo de Carvalho e do Zeca Afonso. Um privilegio que me tirou o sono.
    Hoje é fácil dizer que a ditadura estava a cair de podre, mas naquela altura todas as duvidas e incertezas passavam pela nossa cabeça.

    A propósito destas lutas politicas da oposição lembrei-me do livro que me foi oferecido pelo meu amigo José Tengarrinha ( Combates Pela Democracia,1976), em cuja dedicatória escreve esta frase luminosa:

    Para além dos diferentes caminhos e opções de cada um, o
    que conta, acima de tudo, é a atitude na vida perante os
    problemas centrais da opressão e da injustiça. É isso o que
    define o homem, no seu papel transformador da sociedade. E é
    isso, também, o que, ontem como hoje, nos coloca lado a lado nos
    combates comuns.

    Manuela Granja

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